Ela (e Ele)
Acendeu as três velas. Uma a uma. Aroma a âmbar escuro. Colocou-as, alinhadas, ao lado do incenso aceso, no suporte da cama de madeira recuperada. Aconchegavam-lhe a saudade. Esse sentimento tão prazeroso como sofrido.
Imaginava-o deitado na cama, à sua espera. A contemplar com curiosidade os pormenores do quarto nos quais mais ninguém repararia, só ele. A simetria da janela dividida em quadrados, esses que repartiam o seu rosto refletido em mil pedaços, para que não se distraísse com a seu próprio reflexo. O candeeiro a segurar os calções de renda vermelha dela, regulando os tons do quarto. Os livros no canto, uns em cima dos outros, amontoados de um jeito intencionalmente imperfeito.
Imaginava perder-se nos olhos dele, a contemplar a sua contemplação. E a sorrir, discretamente, mordendo o lábio de baixo, sem mostrar os dentes. A sorrir com o coração. Esse que a cada batimento se conectava com os arrepios que lhe subiam por entre as pernas. Em busca da perdição. Em busca da salvação. Até ele voltar a encontrar-se com o seu olhar. Para sorrirem os dois. Sorrirem o amor, esse amor miudinho que ainda não admitia ser por inteiro, ainda.
Imaginava a dança que se sucedia. Essa dança ainda sem toque, só de atração. Como dois ímanes, iam-se tornando num só, num só em movimento, que se movia sem se tocar. Imaginava permanecer nessa dança só mais uns instantes. Sabia que o desejo era mais ardente nesse momento em que ainda não se tem. Esse segundo em que as mãos quase se tocam. Em que os lábios quase se unem. Em que as almas quase se recordam que sempre foram uma só.
Finalmente, os dedos dela sentiam suavemente o rosto dele como se fosse a primeira vez, porque era sempre a primeira vez. Estudavam a textura da sua barba. E do seu cabelo. Ao mesmo tempo que inspirava o seu cheiro a verdade, presença, poder, vulnerabilidade. Sentia as suas costas, já mais em jeito de arranhão do que carícia, inspirando os lábios dele a descobrirem os recantos do pescoço dela. E depois da sua orelha. Até que a audição dela se diluía na respiração dele. E assim, ele seguia deliciando-se com o seu sabor a verão e pureza, a leveza e liberdade, ainda que se encontrassem presos em pleno inverno no centro da cidade.
Recordava essa memória do que era tê-lo dentro dela. Essa sensação de conexão, de pertença, de união. Imaginava que o acesso ao transcendente é concedido a dois: a dois corpos conectados sem vergonha, a duas almas que não têm medo ora de ver, ora de se deixarem ser vistas. E assim o via. E se deixava ser vista. Para subirem ao céu e descobrirem de que são feitas as nuvens, e depois as estrelas.
Até que as chamas das velas se foram consumindo, junto com o incenso, esse que já nem era...
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