Utopia
Se pudesse escrevia-te uma carta, uma carta intelectualmente lamechas, logo totalmente absurda para aqueles que ainda acreditam em clichés. Não te falava em cavalos brancos, nem de uma princesa em apuros, portanto. Dizia que te amo, como não se amam os adultos. Explicava-te como me tocaste com conteúdo, com matéria, com profundo. Mencionava a tua mente, não a cor do teu couro cabeludo. Já vivi alguns amores, confesso. Já me desiludi, já magoei, já chorei. Já senti quase de tudo, e tudo o que não quero continuar a sentir é vazio, indiferença. É nesse lugar de passividade que me lembro de ti. De quanto me falaste de mim própria sem palavras. De como me excitaste com conceitos tão abstratamente concretos e reais que nem precisámos de os definir. De quando percebi que os teus olhos espelhavam o que penso que sou a única a pensar... O mais engraçado é que sei que não temos os mesmos ideais, que não somos adeptos do mesmo partido, provavelmente nem da mesma equipa de futebol; que preferes os salgados aos doces, os discursos aos textos, a política ao desporto, a razão à imaginação. Mas é por isso que os meus olhos brilham e que o meu coração bate, e que sorrio finalmente não porque a convenção social me diz para mostrar os dentes, mas porque somos tudo menos o que a ela nos diz para ser. Somos transcendentes num universo conformado ou projeções de uma utopia na qual nenhum desses pormenores importa quando encaixamos extraordinariamente sem nunca sequer fazermos parte de um puzzle. Quando sabemos que as nossas pequenas diferenças seriam as pequenas emoções das discussões que seria a nossa vida a dois, e que nenhuma delas se poderia comparar à nossa conexão. E, sim, podíamos lutar para sermos reais, podíamos. Procurarmo-nos e casarmo-nos e vivermos alheios à felicidade para sempre, assumindo que a felicidade até nem devia ser conceito. Mas há amores que não foram feitos para serem vividos, só sentidos; e pessoas que não surgiram para ficar, só para desensinar a viver, ou mostrar o que é ser numa utopia, depende do ponto de vista.
Photo by Kelly Sikkema on Unsplash
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